A face digital da desigualdade

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Ontem fui ao banco com mamy para aquelas ainda chatas e necessárias atualizações de cadastro e, enquanto aguardávamos, pude observar o novo capítulo da problemática que envolve o “homem e a máquina”.

Situação concreta: uma senhora (ela foi a primeira, se seguiram pelo menos mais umas 10 pessoas com problemas semelhantes enquanto eu estava observando) na área de autoatendimento se aproxima da funcionária do banco encarregada da tarefa sobre-humana de fornecer informações diversas, senhas para entrar na agência e orientar a utilização dos caixas de autoatendimento. Ela pede orientações para recadastro de senha e a funcionária informa que ela deve fazer pelo aplicativo. Ela pede ajuda, pois não tem esse aplicativo e não entende “dessas coisas de internet”, ao que a funcionária responde que não pode fazer (não está autorizada) e ela deve fazer sozinha ou procurar alguém que saiba.

Bem, aí estão todas as informações necessárias à nossa reflexão de hoje, então vamos lá!

Com a pandemia e a falta de acesso das pessoas aos serviços de forma presencial (a educação foi um grande expoente, mas merece uma reflexão própria) os governos apressaram-se em anunciar aplicativos de todos os tipos e para todas as finalidades. Governos e bancos se orgulharam de ter identificado os “invisíveis”, aquelas pessoas que não estavam cadastradas em bancos de dados públicos como empregados, clientes de bancos ou beneficiários de qualquer programa.

Pois bem, acontece que o desenho das políticas públicas nos últimos anos, o que foi revelado bem durante a pandemia, não tem levado em consideração a face real do Brasil (e de muitas partes do mundo, mas estamos falando de nós), aquele Brasil que possui características históricas, culturais, econômicas, sociais e políticas tão heterogêneas que dariam para ser divididas em vários países. Essa mesma consideração serve para o acesso à tecnologia e, quem me acompanha por aqui sabe o quanto já chamei atenção para o fato de que nem todos nós estamos no século XXI.

O tal século da tecnologia chegou plenamente para algumas bolhas. Temos acesso desigual à estrutura de tecnologia, à educação necessária para utilizá-la, ao poder aquisitivo para consumi-la e às informações necessárias para incorporá-la ao nosso dia a dia. Você que nasceu em meio a smartphones, tablets e inteligência artificial talvez possa estar pensando que as pessoas têm que aprender, quem não sabe é idoso e etc., mas deve ter em mente que o mundo não gira em torno de telas, especialmente se você está em posição de liderança política, presta serviço público ou, o mais importante, desenha políticas públicas.

Esse tipo de “cegueira tecnológica” está causando uma nova forma de desigualdade de acesso aos bens e serviços públicos e, consequentemente uma nova forma de desigualdade social e nós, que temos privilégios de acesso à tecnologia e às decisões políticas precisamos conhecer muito bem o espaço no qual atuamos, sob pena de continuar construindo uma sociedade de privilegiados e excluídos por causa de simples ações como, por exemplo, a disponibilização de um funcionário do banco para orientação de instalação e operação de um aplicativo (uma pessoa capacitada e em ambiente seguro, ao invés de submeter as pessoas ao favor de estranhos).

Percebe como funcionam as questões e como tudo é política? Uma pequena ideia bem intencionada, mas mal pensada ou mal executada pode produzir efeitos danosos na sociedade e na vida das pessoas.

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