A ficção científica e o “Novo normal”

Author

Categories

Share

Chegando meados de março me lembrei da minha reflexão nessa coluna em fevereiro de 2020, quando começávamos a conversar sobre os fatos políticos por aqui.

Na ocasião, dividia com vocês as minhas impressões sobre a série O conto da Aia (Handmade’s tale, no original). A série televisiva, inspirada no premiado romance distópico[1] de Margaret Atwood publicado em 1985, tem como elemento central a subjugação das mulheres em uma sociedade onde o fundamentalismo subverteu a ordem política democrática. Para além do elemento central, me chamou ainda mais a atenção a forma como a ideia de “necessidade” de se estabelecer uma nova ordem foi se infiltrando no dia a dia da política daquela sociedade. As leis foram sendo mudadas, algumas políticas públicas e direitos foram sendo restringidos e ideias-força sendo incutidas via propaganda.

Observando os métodos de dominação presentes no conto (não se preocupe, não darei spoilers, rs), fiz imediatamente a associação com 1984 de George Orwell, seus “três minutos de ódio”, seu Ministério da Verdade e suas restrições sociais, elementos que fazem valer a pena cada página lida. Me veio à mente também o mais recente filme de ação e ficção científica Hobbs e Shaw que, entre carros, ironias e explosões nos apresenta um futuro tecnológico bastante tangível e preocupante.

O que essas histórias têm em comum é sua pretensão de chamar a atenção para a catarse social em que vivemos, na qual o medo do desconhecido tende a reduzir a resistência à dominação. Em nosso mundo real contemporâneo, esse medo tem se manifestado a partir da incerteza sobre os rumos da pandemia que enfrentamos, sobre em que métodos sanitários confiar, quais autoridades ouvir.

A violação de uma série de direitos fundamentais ao redor do mundo nos coloca em um cenário distópico, daqueles que tentavam nos alertar desde Mad Max ou Blade Runner. A ficção sempre nos deu uma visão projetada de onde poderíamos chegar caso ignorássemos certas regras sociais, permitíssemos certos excessos políticos ou simplesmente quiséssemos “brincar de Deus”.

Não estou falando apenas na pandemia e da péssima atuação do governo atual, estou chamando a atenção para o fato de que qualquer governo pode se aproveitar da distração das pessoas enquanto tentam sobreviver e praticamente todos o fizeram em certa medida (e não apenas no Brasil). É triste eu sei. É a natureza humana? É inerente à política? Prefiro acreditar que é o que acontece quando não exercemos o senso crítico e não contestamos quem decide sobre nossas vidas.

Me incomoda profundamente a expressão pseudo positiva “o novo normal”. Não existe “novo normal” porque nada do que estamos vivendo (e em certa medida já estávamos) é normal. Não é normal uma doença como essa, não é normal a falta de atendimento médico, falta de condições de trabalho, falta de acesso à medicamentos, fome e tampouco é normal que uma parcela viva aprisionada achando que isso é um privilégio enquanto a grande maioria pode apenas rezar para não adoecer nas ruas e transportes públicos lotados. Nada disso é normal, portanto, aceitar que daqui para frente iremos evitar falar ou tocar nas pessoas, não se importar com quem está morrendo de doença ou de fome, andar por aí despersonalizada e “sorrindo com os olhos”, aceitar que as “autoridades” restrinjam nossos direitos sem nos dar uma resposta efetiva sobre a melhoria das condições atuais não é, definitivamente, normal. Temos que colaborar e cumprir os protocolos, ajudando ao próximo da melhor maneira que pudermos para sair dessa situação, mas daí a aceitar que nos digam que devemos continuar assim indefinidamente porque “é assim mesmo”, não vai dar.

Sinto dizer que não existe um iluminado ou iluminada que irá nos tirar dessa situação como um passe de mágica. Temos que agir como uma sociedade e cooperar pelo bem comum, isso é política, na verdade a essência da definição Aristotélica e só por meio dela podemos desconstruir e construir a história, as crises e as sociedades.

Lembre-se que, nas histórias, sempre há alguém que enxergou o que havia errado, o herói ou heroína que teve coragem de falar mais alto, mas sempre foram apoiados por um grupo com ideias e habilidades complementares, o que lhes permitiu ter sucesso na empreitada. Tenho certeza de que os habitantes dessas sociedades distópicas e alegóricas tem muito a nos ensinar, prestemos mais atenção à nossa volta.

 

[1] Distopia designa lugar ou estado em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação.

Author

Share