O lamentável episódio da criança de 10 anos, vítima de abuso sexual e submetida a um aborto legal, trás de volta aos noticiários e às nossas mentes a ainda latente barbárie humana. A despeito do absurdo da violência que essa criança sofreu é importante que se pontue também as questões decorrentes desta violência inicial. Em primeiro lugar, é crime a exposição de menor de idade, agravado pelo fato de ser vítima de abuso. Consta no Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma legível.
Aquela moça que divulgou a identidade da menina e cometeu mais essa violência não estava exercendo sua liberdade de expressão, tampouco a de protesto, ela cometeu um crime, que isso fique bem claro. Ela se auto-intitula de direita, conservadora e mais diversos adjetivos que supostamente a fariam moralmente superior, e com isso quero destacar que o problema dela não é ser de direita, como muitos na internet de ideologia oposta se apressaram em apontar. O problema dela é de caráter, ideologia nenhuma faz a pessoa ter atitudes desumanas e criminosas como a dela (e não é a primeira vez).
Ser adepto ou adepta de ideias orientadas à direita ou à esquerda não qualifica as pessoas como boas ou más, todas tem direito ao livre pensamento e pessoas como essa moça apenas denigrem as opções políticas de outros, negativando mais uma vez a importância do debate político.
Nem preciso dizer que as pessoas protestando no hospital e chamando a menina de assassina, nada tinham de corretas ou religiosas. Ali falta humanidade, falta diálogo e sobra extremismo, disfarçado de amor a Deus. Sou católica e não defendo o aborto, mas de forma alguma sou capaz, como cristã, de apontar o dedo a uma criança naquela situação, nada do que eu pense me dá o direito de um julgamento tão severo sobre a dor do outro, muito menos de negar um direito constitucional.
Outro momento equivocado ligado ao episódio foi de uma deputada que tentava “justificar” sua posição (que mais refletia sua opinião pessoa do que seu papel como representante política) dizendo que a menina tinha aparência de 16 anos e não de 10, portanto tinha condições de gestar o bebê e e depois poderia doar.
Mesmo uma junta médica e jurídica tendo estabelecido que não havia capacidade da menor para isso, a deputada, que tem entre suas atribuições no cargo, defender os princípios constitucionais e os interesses da sociedade (e não apenas os de seus eleitores e menos ainda os seus próprios). Vou deixar para sua reflexão o equívoco da visão cultural dela e vou chamar a atenção para o equívoco dela em seu papel de representante política, o aborto realizado nesse caso estava dentro da lei, estabelecido claramente em todos os parâmetros.
Uma vez perguntado sobre o tema do aborto, o falecido e então candidato Eduardo Campos respondeu: “Como cidadão e cristão sou contra, mas como representante político devo garantir que as pessoas envolvidas tenham direito ao que a lei determina”. Esse é o papel de um representante, você está ali para agir em nome dos interesses da sociedade, em respeito ao que diz a legislação que regula os direitos, não é sua opinião que prevalece, é o equilíbrio entre os interesses dos seus eleitores e o bem estar de toda a sociedade, mesmo que o segundo possa ir de encontro ao primeiro em algumas situações.
Isso não está claro para alguns representantes, que agem como pessoa física ou líderes de grupos. Esse não é o papel do representante, o representante deve, antes de tudo, pautar o debate e não fortalecer o embate. Em algum momento histórico, as forças sociais envolvidas debateram até um ponto de vista prevalecer ou chegaram a um consenso e estabeleceram uma linha que resultou na legislação que temos e, até que novas forças sociais a modifiquem é o que temos e precisamos respeitar.
Os protestos e o debate em torno do tema são importantes e relevantes de ambos os lados e podem gerar novos protocolos de enfrentamento, novas legislações ou confirmar os existentes. Mas o que deve ficar claro é que, em uma democracia o seu direito encontra limite no direito do outro e o pensamento único não é democrático, já discutimos isso. O que assistimos nesse episódio lamentável não pode ser chamado de debate, tampouco contribui para o avanço de uma discussão séria sobre os temas, seja o do abuso infantil, seja o do aborto.
Política democrática não se faz com fundamentalismos, precisamos debater além das barreiras que nos cegam, pensar em alternativas, em soluções, em formatos que permitam que a sociedade lide com as situações. Devo ainda chamar atenção para o crime que gerou essa situação e que nem de longe tem sido debatido adequadamente, o abuso sexual infantil. Você viu em algum lugar os representantes políticos e a mídia discutindo isso a partir desse episódio? Com aborto ou sem aborto, ainda estamos longe, enquanto sociedade, de deixar de culpar a vítima. Da fala da deputada sobre a aparência física da menina aos gritos de assassina no mundo real e no virtual, sobra incoerência e falta debate. Assim é difícil avançar política e socialmente.