Comecei a assistir a série O conto da Aia (Handmade’s tale, no original) quando esta já encontra-se em sua terceira temporada, o que me ajudou a ter uma compreensão maior da mensagem. A série televisiva é inspirada no premiado romance distópico de Margaret Atwood, publicado em 1985, e que tem como elemento central a subjugação das mulheres em uma sociedade onde o fundamentalismo subverteu a ordem política democrática. Para além do elemento central, me chamou ainda mais a atenção a forma como a ideia de “necessidade” de se estabelecer essa nova ordem foi se infiltrando no dia a dia da política daquela sociedade. As leis foram sendo mudadas, algumas políticas públicas e direitos foram sendo restringidos e ideias-força sendo incutidas via propaganda.
Comecei a assistir à série O conto da Aia (Handmade’s tale, no original) quando esta já encontra-se em sua terceira temporada, o que me ajudou a ter uma compreensão maior da mensagem. A série televisiva é inspirada no premiado romance distópico[1] de Margaret Atwood, publicado em 1985, que tem como elemento central a subjugação das mulheres em uma sociedade onde o fundamentalismo subverteu a ordem política democrática. Para além do elemento central, me chamou ainda mais a atenção a forma como a ideia de “necessidade” de se estabelecer uma nova ordem foi se infiltrando no dia a dia da política daquela sociedade. As leis foram sendo mudadas, algumas políticas públicas e direitos foram sendo restringidos e ideias-força sendo incutidas via propaganda.
Observando os métodos de dominação presentes no conto (não se preocupe, não darei spoilers,rs), fiz imediatamente a associação com 1984 de George Orwell e seus “três minutos de ódio” e a presença aparentemente inofensiva (com a justificativa de serviço público) dos programas que pingam sangue na televisão, antes exclusivos do horário de almoço (o que já era absurdo) e que agora dominam toda a grade dos informativos televisivos. Em comum, esses três tem a função de manter a catarse social, o medo do desconhecido e reduzir a resistência à dominação. Em nosso mundo real contemporâneo, esse medo foi direcionado à política como forma de perpetuação de modelos de exercício do poder baseados em manutenção do grupo político que governa (isso ocorre nas esferas federal, estadual e municipal), quando o desejo de mudança dos cidadãos/eleitores é respondido com rostos jovens do mesmo partido ou família[1].
Pois bem…ocorre que esse modelo viola os mesmos princípios democráticos onde se baseia, sendo o mais importante (em minha opinião) o princípio da alternância de poder, que oxigena o sistema político e permite aos cidadãos/eleitores experimentar e avaliar a nuvem de ideias defendidas pelas diferentes forças políticas atuantes. Essa violação foi em certa medida institucionalizada com a reeleição, que permite ao gestor concorrer novamente estando no cargo (o que viola ainda outro princípio, o da igualdade de condições na disputa política). Mas o que ninguém te conta é que essas sutilezas compromentem nossa ainda jovem democracia (sim, temos apenas trinta e um anos de período democrático ininterrupto 1989-2020) com práticas não democráticas dentro de uma democracia.
Não estou falando do governo atual, que tanto se alardeou que seria autoritário e teria como finalidade a subversão da democracia e etc. (certamente ele tem seus “problemas“, mas caminha dentro das regras), estou chamando a atenção para o fato de que qualquer governo pode fazer isso e todos o fizeram em certa medida. Certa vez uma jovem na plateia de uma palestra que eu ministrava sobre democracia, me indagou surpresa por que eu estava dizendo que existem elementos não democráticos e/ou autoritários dentro de uma sociedade democrática. Respondi a ela com um exemplo bastente claro: as mudanças nas regras eleitorais. Pode-se citar o caso recente da Venezuela (para ficarmos apenas em um, pois os exemplos ao longo do mundo não caberiam nesse post), onde Hugo Chávez, ao assumir seu primeiro mandato dissolveu o Conselho Nacional Eleitoral, substituindo seus integrantes e reformando a legislação eleitoral a fim de permitir extensão de seu mandato e estabelecer regras restritivas à atuação partidária e candidaturas futuras. É um país democrático, pois elege seus representantes, mas de fato, a forma como os faz viola vários fundamentos democráticos.
Uma sociedade democrática tem como fundamento a autorização do exercício do poder político por meio de eleições (justas, livres e periódicas), e todas as experiências não democráticas apresentaram em seu nascedouro alterações nas legislações eleitorais em favor da extensão do poder de quem o detinha. Nossa legislação eleitoral é conhecida como “fascicular“, pois os legisladores a modificam quase em todas as eleições. Algumas dessas modificações são benéficas e fazem parte de nosso amadurecimento democrático, servindo para racionalizar custos, nivelar a disputa e atualizar as regras frente aos cenários tecnológicos…no entanto, é importante que o cidadão/eleitor atente para a natureza dessas modificações e cobre dos representantes que elegeu a transparência sobre essas decisões, exercendo outro princípio que é o do controle do poder por parte dos governados sob pena de ficarmos sujeitos a um exercício do poder político não-democrático, que bem pode ser exercido por aqueles que se dizem defensores da democracia. O controle do poder não é restringir a atuação dos representantes, é, antes de tudo, acessar informações, avaliar e acompanhar a atuação dos poderes executivo, legislativo e judiciário (embora este não seja eleito, exerce papel importante na condução das leis e regras a serem seguidas pelos que o são) a fim de ter condições de perceber tais práticas incoerentes, alguma possível violação e, em caso de conduta inadequada, não renovar a concessão eleitoral. Tenho certeza de que os habitantes dessas sociedades distópicas e alegóricas tem muito a nos ensinar.
[1] Modelo rechaçado de forma marcante com a última eleição majoritária (2018), onde houve renovação de mais de 80% no Congresso Nacional e a vitória de um novo grupo político na presidência.