Por Lídia Freitas
No mundo em que vivemos atualmente, ouve-se muito a frase: “mas já estamos no século XXI, por que isso ainda acontece?”. Essa frase aplica-se a conversas sobre racismo, violência contra a mulher, xenofobia e outras patologias sociais das quais parece que nunca nos curamos. Ocorre que muitos de nós, leitores, espectadores e internautas* não nos atentamos ao fato de que vivemos na sociedade da informação, mas essa avalanche de informações às quais somos submetidos a cada minuto, em grande medida no formato imagético, não compreende necessariamente uma reflexão sobre o tema que está exposto, muitas vezes nem pelo próprio emissor da mensagem.
Em verdade, como nos diz Sartori em seu Homo Videns* , “a imagem é inimiga da abstração, e o raciocínio abstrato é essencial para a compreensão do mundo”. Sendo assim, esse constante consumo de informação e modelos de imagem moldam nossa reflexão ou nos privam dela (sim, nenhum de nós está imune, apenas alguns estão conscientes do fato e tentam contornar seus efeitos, outros não), levando ao seguimento de padrões de pensamento e frases de ordem como uma multidão virtual pseudo-informada.
Fiz essa introdução para situar você, meu caro internauta, diante de uma matéria relativa a um podcast do UOL no qual os jornalistas “analisavam” a postura da atriz Regina Duarte ao considerar aceitar o cargo de Secretária de Cultura no Governo Federal. Um dos comentadores, ao mesmo tempo em que elogia a carreira da atriz, critica a sua escolha em aceitar o cargo, alegando que a personagem Malu, que a atriz representou na série Malu Mulher seria contrária à postura da atriz e que a Regina Duarte daquela época era outra pessoa, que ela mudou de ideologia, que não é coerente, etc. Comentários negativos semelhantes foram direcionados à atriz em 2002, quando ela apoiou publicamente a candidatura de José Serra à presidência. Ora vejam, inúmeros comentaristas ao longo dos dias que se seguiram entre o convite e a aceitação do cargo, teceram comentários semelhantes, alegando questões ideológicas e que a atriz estaria indo contra o que defende a cultura, dentre outros argumentos.
Longe de defender algumas condutas expressas pelo governo atual, bem como pelos anteriores em relação à cultura, me chamou a atenção o clamor pela ideologia, a alegação de uma ideologia “certa” ou “errada”. Mas o que ninguém te conta é que ideologia é um conceito que pertence ao campo das ideias políticas e, como tal, não é própria de nenhuma posição do espectro político (eixo esquerda-direita e suas variações). Ideologia, em sentido neutro, designa um conjunto de ideias e visões de mundo de indivíduos e/ou grupos, que orienta suas ações sociais e políticas. Seria portanto, coerente alegar que todos tem direito à afinidade com alguma ideologia, já que temos direito à ter ideias. Sua apropriação por distintos grupos políticos ao longo da história imprimiu um caráter negativo ao termo, associado a comportamentos estúpidos e por vezes extremistas. Bem, em minha opinião o correto seria negativar a estupidez com que se empregam as ideias e não os termos que são usados para explicá-las.
O que quero dizer com isso, meu caro internauta, é que se faz necessário refletir sobre os usos que os interlocutores tem feito das palavras e dos argumentos nos dias de hoje. Criticar a Regina Duarte por assumir um papel de destaque no campo em que atua, segundo as ideias em que acredita é, no mínimo estar do outro lado da mesma moeda da intolerância. Defende-se uma democracia na qual não possa haver o princípio do contraditório? Que tipo de ambiente de intolerância seria esse no qual estamos imersos em pleno século XXI?
Como Cientista política, defendo o direito da cidadã Regina Duarte defender seus posicionamentos ideológicos da maneira como os entender melhor (desde que não proceda em atitudes desrespeitosas aos cidadãos beneficiários das políticas públicas que possa vir a desenvolver) e de assumir um cargo em um governo no qual acredita, com o propósito de contribuir com a área na qual atua, assim como Gilberto Gil o fez muito bem de 2003 a 2008, quando o governo possuía outro posicionamento político.
Eu posso concordar e divergir de você, de forma respeitosa, argumentativa e inteligente sem que isso signifique que você é melhor que eu ou vice-versa. Diálogo funciona assim, com confronto de ideias, de outro modo é monólogo e aí sim a coisa fica preocupante, quando se fala em sociedade e ambiente político. Temos que refletir, entender os fatos e os argumentos e, principalmente entender os conceitos e as ideias que defendemos, para não sair por aí defendendo lobo em pele de cordeiro.
Fica a proposta para sua reflexão e fiquem à vontade para comentar.
Abraço grande!
1 Expressão utilizada no título do livro do antropólogo argentino Néstor García Canclini (2007) onde este faz uma reflexão sobre o perfil de interação entre o emissor e o receptor das mensagens midiáticas ao longo da evolução das tecnologias de informação e comunicação. Vale a leitura!
2 Giovanni Sartori, cientista político italiano, discute nesse livro de 1997 sobre o papel da mídia televisiva na mudança da natureza do ser humano. Vale a leitura!
Lídia Freitas
Sou Cientista política, Mestre em Ciência Política e especialista nas áreas de comunicação e marketing político. Pesquisadora da relação entre mídia e política, comportamento político e eleitoral e teoria democrática. Consultora de estratégia política e eleitoral. Você me encontra no Instagram e Twitter no pelo perfil @apoliticadascoisas e nos encontraremos por aqui todas as quartas às 19h.