De tempos em tempos minha coleção de livros e filmes de ficção científica me dão uma luz sobre o momento político que vivemos. Apesar da nomenclatura “ficção”, grande parte deles são baseados em apurada observação política, sociológica e antropológica.
No ano de 2020, com essa experiência surreal de pandemia, me veio à mente novamente o filme Minority Report de 2002, estrelado por Tom Cruise e dirigido por Steven Spielberg. Na película, com roteiro baseado em um conto homônimo de Philip K. Dick, um departamento de polícia especializada, denominado Pré-crime, apreende criminosos com base na previsão de três videntes e “interpretado” por um algoritmo que tem como propósito impedir que crimes sejam cometidos. Mas não só impedir, o departamento também prende as pessoas acusadas de “intenção” de cometer o crime, uma violação absurda da presunção de inocência. Essa alegoria floreada por efeitos especiais, nos entrega a premissa do antagonismo original entre liberdade e segurança.
Esse antagonismo ressurge recentemente na proposta de programas de rastreamento de contágio via celular, onde aplicativos forneceriam dados sobre pessoas e locais onde haveriam infectados pelo covid-19, para que os cidadãos os evitassem e pudessem ficar seguros. Nos países europeus onde houve a tentativa desse “rastreamento de contágio”, o fracasso foi generalizado, quando apenas 3% dos cidadãos baixaram o aplicativo. A interpretação dos dirigentes políticos é que falta às pessoas um senso de comunidade, comparado com o mundo oriental, onde esses aplicativos contribuíram significativamente para frear o contágio.
Veja, tem alguns detalhes nessa interpretação. Em primeiro lugar o mundo oriental a que os dirigentes se referem é essencialmente a China e não a totalidade dos países orientais. Há sim no mundo oriental uma maior cultura de comunidade onde as ações pessoais levam em conta o impacto coletivo, mas a China, especificamente, tem um regime político autoritário onde a liberdade é um conceito bastante restrito e as pessoas já são controladas com a ajuda da tecnologia, não é algo que surgiu com o quadro de pandemia e nem depende da livre aceitação.
Outra questão é a desconfiança em relação ao uso dos dados que serão coletados para “garantir a segurança” das pessoas em relação ao contágio. Uma das maiores discussões desse século diz respeito à segurança dos dados que compartilhamos a todo o momento. Temos episódios que vão desde a coleta indevida de dados por aplicativos como Faceapp e Zoom até a suposta interferência nas eleições americanas com base em dados coletados indevidamente pela empresa Cambridge Analytics, passando por vazamentos de dados relativamente frequentes no Facebook e gravações não autorizadas de áudio pelo dispositivo Alexa da Amazon.
Estamos cercados por insegurança tecnológica e de certa forma reféns dessa fragilidade cada vez que instalamos um aplicativo em nossos dispositivos ou navegamos na web. Deveria ser óbvio aos dirigentes políticos que um sistema de rastreamento ativo das pessoas e seus dados de saúde fossem um nível a mais de invasão que não seria bem aceito. Complementado pela falha no argumento da segurança em relação ao contágio, visto que dados mostraram uma grande quantidade de pessoas infectadas mesmo em isolamento social, como foi o caso dos Estados Unidos.
Mas há aí um traço de imaturidade política combinado com pinceladas de cultura autoritária (que não é exclusividade da cultura latino americana) que os leva a acreditar que seria algo simples “vender” tal tecnologia como resposta e mecanismo de proteção que sabemos não ser possível nesse momento.
Há uma desconexão real entre o que pensam os dirigentes políticos e o que querem os cidadãos. É um movimento que vem se arrastando e tomando forma há anos e que eles ainda não compreenderam, nem com as ondas de protestos pelo mundo, nem com as mudanças nas forças políticas, nem com os extremismos ideológicos, nem com os padrões de voto, muito menos com as pesquisas que apresentam números gritantes sobre confiança política há pelo menos uma década.
Estamos em meio a um cenário crítico que nenhum de nós jamais pensou viver e nem gostaria de estar vivendo, mas já que estamos aqui, é importante aproveitar a “desaceleração” do mundo e observar as questões sociais que estão sendo expostas em nosso país e no mundo. A precariedade dos sistemas de saúde, a importância da pesquisa científica, o comportamento dos líderes políticos e a importância de nossa liberdade democrática.