Enquanto nos preocupamos com o rumo que as coisas vão tomar em nosso país e no mundo, podemos testemunhar (se você estiver prestando atenção) a consolidação de uma mudança que ocorre gradativamente ao longo dos últimos anos, o que vem sendo chamado por alguns observadores políticos e econômicos de “capitalismo digital”. Durante a vigência do isolamento social, temos encontrado a possibilidade de continuar o trabalho, os estudos, os relacionamentos e a administração das nossas vidas graças às plataformas digitais e a adaptação das empresas à comunicação direta e serviços de delivery de quase tudo, fundindo de uma vez por todas as esferas física e digital. Por outro lado, essa mesma fusão ocorre em uma sociedade que se apresenta perigosamente positiva e transparente, onde a ideia de transparência guarda menos identificação com a liberdade de informação e mais com uma forma de controle e uniformização da sociedade.
A ideia da transparência de tudo e de todos guarda a pretensão de uniformizar a percepção dos acontecimentos e exige o abandono total da esfera privada a fim de alcançar uma comunicação transparente entre todos os setores da sociedade, um fenômeno na linha dos “pós” denominado pós-privacidade, onde se encaixam os tais reality shows, as hastags vida real, a captação indevida de dados e a destruição da privacidade. Somos levados a abrir mão de nossa esfera privada em nome de uma alegada segurança (através do monitoramento), conveniência e do pertencimento, coisa que fazemos quase automaticamente ao aceitar os “termos de uso” de todo e qualquer aplicativo que acessamos. Nesse quadro, a conveniência, em especial, tornou-se uma parte tão significativa de como se entende a liberdade, que as pessoas sacrificam automaticamente sua privacidade e tornam-se controláveis. Mas onde fica a política nisso?
O tema da transparência chegou à opinião pública associado, inicialmente às ferramentas democráticas da liberdade de informação e do combate às ações de corrupção. No entanto, ao assumir traços de uniformização discursiva e se aliar à tecnologia na corrosão da privacidade, começa a revelar traços totalitários ao estilo do Big Brother de Orwell. De maneira geral, a transparência pretende uniformizar, não permitindo lacunas de informação e visão, o que remete a uma versão digital do Homo Videns de Sartori, no qual a descarga de informações imagéticas é levada ao extremo e, combinada com a ausência de privacidade, interfere nas decisões pessoais e políticas, que deixam de ser submetidas à reflexão e debate, passando a ser expostas à audiência em um palco constante.
Mas o que ninguém te conta é que a política é uma ação essencialmente estratégica e, como tal possui uma esfera secreta inerente que não se relaciona a enganos e corrupção e, sim ao planejamento de ações, leituras de cenários para tomada de decisões e propostas para a sociedade, assim como acontece em nossa vida, quando precisamos pensar por algumas horas ou dias e considerar vários fatores, consultar outras opiniões antes de tomar uma decisão sobre assuntos importantes. A transparência total impede seu funcionamento e, portanto seria o fim da política como ação, dando lugar à administração das necessidades sociais que vão surgindo – em detrimento de um plano de governo focado em políticas públicas de prevenção e resolução – o que acaba por não interferir nas relações econômicas e sociais vigentes, ou seja, mantém o status quo e despolitiza a sociedade à medida que não articula uma vontade política alternativa, não propõe um plano de desenvolvimento estratégico real, nem produz movimentos de reflexão e mudança social.
A ideia de transparência pertence ao campo das ideias políticas e, como tal, não pertence a nenhuma ideologia ou partido específico, de fato não se liga a nenhum deles sendo alçada ao campo discursivo, afinal quem é contra a transparência? No entanto é necessário diferenciar as funções e os graus de transparência na política. Prestação de contas das ações de governo é exemplo de ferramenta de relacionamento com a sociedade, mas a completa transparência de todos os passos das decisões políticas, das ações pessoais e públicas e da condução dos governos leva a uma despolitização, a uma ausência de reflexão entre os políticos, gestores e na sociedade e, consequentemente, a degeneração da política enquanto ação necessária ao bem comum. Percebem a diferença?