Síndrome do Pensamento Único – você conhece os sintomas?

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A ideia de um único pensamento presente em uma sociedade já era observada no início do século 19, quando o filósofo Arthur Schopenhauer cunhou a expressão “pensamento único” para se referir (em linhas gerais) a um pensamento sustentado por si mesmo, por meio de uma lógica independente de outros pensamentos. Um século mais tarde, outro filósofo e sociólogo pertencente à Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, partiu de uma ideia similar para elaborar o que chamou de “pensamento unidimensional”, designando um novo sistema de dominação criado pela tecnologia, que cessou os ímpetos revolucionários da burguesia e do proletariado, cabendo aos grupos de minorias que viviam às margens da sociedade esse papel de motores da revolução[1].

Pois bem, não estamos mais divididos entre burguesia e proletariado como muitos ainda acreditam. As relações de produção e as políticas se modificaram mais finamente em razão da tecnologia do que Marcuse poderia prever em 1964, porém o ideal de uma revolução operada pelas minorias encontra-se em pleno exercício discursivo e tem sua expressão máxima no “politicamente correto”. Nem tudo é correto nessa expressão, mas tudo é político. Esse termo descreve a orientação de evitar linguagens ou ações que invoquem exclusão social. Até aí tudo bem, afinal devemos conviver em sociedade exercitando a tolerância e o respeito e, não acho que isso seja vitimização, em vista de um passado recente de discriminação e exclusão na história do mundo, algo que nos lembre disso é valido. Mas na prática essa intenção foi sendo apropriada por grupos minoritários de várias gradações do espectro político para produzir uma retórica dissuasiva e por vezes intimidante que sugere a existência (e preferência) de um pensamento único “correto” pelo qual todos devem ser conduzidos e julgados, ou seja, um instrumento de poder.

Tal deturpação conduz fatal e facilmente as condutas autoritárias, como bem discute o filósofo esloveno Slavoj Zizek ao longo de suas obras onde trata de ideologia na contemporaneidade. Sendo assim, a síndrome do pensamento único é expressa em um comportamento patológico comum em formadores de opinião, seja de grupos políticos, profissionais de mídia, professores ou influenciadores (no atual mundo digital) que acreditam haver apenas um modo de pensar e agir e qualquer pensamento divergente merece ataque imediato, geralmente por escrito ou estímulo a linchamentos e perseguições no mundo virtual. A liberdade de expressar, sugerir ou tentar implementar ideias e práticas alternativas é tratada como ameaça a ser combatida “em nome dos direitos e da democracia”. Você já viu isso no mundo real e virtual, não viu?

No artigo “Entrelinhas” dessa semana do jornalista Alexandre Garcia, ele reflete, em um trecho, sobre um exemplo de pensamento único que distorce a democracia. À ideia de democracia, ao invés da vontade da maioria, tenta se impor discursivamente uma democracia baseada na vontade da minoria, visto que a vontade da maioria configuraria uma ditadura sobre a minoria “ou minorias”. Veja que relativismos são construídos, a deturpação da própria ideia que se diz defender! Em períodos de estabilidade é fácil se estabelecer na sociedade um pensamento que ilustre e justifique aquele momento, a atuação do grupo no poder, as decisões políticas tomadas, etc., e a contestação segue relegada a espaços mais específicos e que reverberam em grupos que falam quase de si para si, não chegando à sociedade como um todo. A crise econômica que se estabeleceu em 2013 e rapidamente culminou em crise política, provocou um turbilhão de insatisfações e ideias adormecidas, catapultadas pela erosão das condições de vida. Nesse contexto a última eleição majoritária, de 2018, representou a face explícita dessa síndrome. Estabeleceu-se uma tutela sobre os pensamentos, as crenças, o estilo de vida das pessoas, o voto certo e errado, a opinião válida e a não válida, acompanhada de “linchamentos virtuais” à cada opinião exposta em redes sociais (suas redes sociais, seu espaço de direito de expressão).

Fomos separados em nós e eles, onde um lado ou outro possuíam a “verdade”, dependendo do cenário do momento. Cheguei a presenciar a gravidade desse quadro em uma palestra acadêmica pós-eleitoral, onde um cientista político e professor universitário, perguntou (verdadeiramente aflito) ao palestrante, “como não vimos isso acontecer?”. Ele se referia à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Eu me perguntei, mas onde ele estava que não conseguiu enxergar a conjuntura? Não viu os movimentos de insatisfação da sociedade que aconteciam desde o início da década? Ocorre que a mentalidade dele estava impregnada de um pensamento único que diz que a esquerda é a única detentora legítima do poder e o representante da direita que venceu a eleição seria um usurpador, ignorando completamente um princípio básico democrático, a alternância de poder. Independente de qual corrente ideológica você professe, é legítimo que todas tenham chances iguais de exercer o poder. Para ele não havia democracia, a eleição foi ilegítima pois Lula não participou, mesmo eu tendo argumentado que o representante do próprio PT e outros dos demais partidos haviam participado. Pois bem, esse é um exemplo claro que prejudica inclusive a correlação de forças políticas, pois se a esquerda e as demais gradações do espectro político orientam-se por esse pensamento não podem exercer corretamente a oposição e podem fomentar um pensamento único do outro lado.

Percebem o problema da falta de posicionamentos divergentes para o exercício democrático real? Maquiavel dizia há mais de cinco séculos, que os acontecimentos da política obedecem à mesma lógica histórica, que são cíclicos e, tal como as questões psicológicas individuais, encerram-se em ciclos viciosos até que tomemos conhecimento e possamos resolver o conflito. Assim como um aglomerado de indivíduos, como sociedade sofremos da mesma patologia cíclica e, observando a história, em todas as vezes em que uma pessoa ou grupo tentou unificar uma ideia ou discurso, levou as sociedades a ruínas temporárias ou permanentes.

[1] Obviamente trata-se de um pensamento mais complexo do que posso explanar nesse post. Caso queira se aprofundar, recorrer ao livro “O homem unidimensional” de 1964.

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